Um beijo

A minha presença naquele lugar era cotidiana. Muitos ali me esperavam, alguns até me desejavam. Outros, no entanto, se agarravam às próprias vidas e se iludiam sonhando que viveriam para sempre. Eu sabia que mais cedo ou ais tarde, minha foice arrancaria suas almas da desgastada casca que eram seus corpos.
Antes de levar alguém (aonde eles vão mesmo?) daquele hospital, sempre passo por todos os quartos. Não é nenhum jogo sádico. É só... sei lá, um desejo oculto de não encontrar algumas pessoas naquele hospital, que mais parecia uma antessala para o cemitério. Acho que eu não disse, né? Esse hospital só atende pacientes com doenças crônicas, incuráveis. A não ser um milagre muito grande, eu seria a única a lhes dar alta.
***
- Olá.
A voz da garota me fez parar. Ninguém, além de mim, tinha entrado no quarto. Estranhamente, ela podia me ver.
- Veio me buscar?
Ela era nova no hospital. O rosto ainda estava corado e a melancolia não dominava seu semblante. Era bem bonita, os cabelos escuros bem cuidados, a pela branca, manchada apenas por uma pinta aqui e uma cicatriz ali. Bem magra, efeito da doença talvez. Não tinha mais que vinte anos.
- Não. Quem morre hoje é um senhor que está no quarto em frente.
- Que pena e que bom.
Ela falava comigo naturalmente, como se fosse uma colega de colégio ou uma amiga de infância. E eu, insanamente, respondia naturalmente também.
- Pelo que sei, você vem muito aqui.
- Bastante.
Passei a visitá-la todos os dias. Ela era curiosa, sempre fazia perguntas complicadas sobre o meu trabalho (algumas nem eu sei a resposta): “Como você está em vários lugares ao mesmo tempo? Afinal de contas, várias pessoas morrem ao mesmo tempo”, “Você se aposenta e passa o cargo para outra ou é eterna?”; Falávamos de bobeiras do cotidiano, ríamos de cenas engraçadas que lembrávamos e, principalmente, dividíamos nossos medos e frustrações.
Logo percebi que éramos muito parecidas. Carentes, solitárias e com um destino aparentemente certo e assustador. A cada encontro ficávamos mais próximas. Algo diferente, mais profundo, mais forte, avassalador, ia surgindo.
- Morte, isso é estranho.
- Isso o que?
- Me apaixonar por você.
Ela sabia ser direta. Como resposta, eu sorri e, como esperava, ela entendeu o que eu queria dizer. Brincalhona, disse com um fingido ar superior:
- Sabia que você não riria resistir aos meus encantos.
Éramos felizes. O namoro era bem estranho, mas feliz. Mas a realidade era implacável. A doença progredia, vencia batalhas, conquistava espaços. Até que o dia que não queríamos que chegasse chegou. A lâmina da minha foice deixou de refletir meu rosto e me mostrou a imagem dela.
- Ai, que dor no corpo. Boa noite, meu amor.
- Hum...
- Dois...Que cara é essa? Aconteceu alguma coisa?
- Nada.
Ela se ajeitou na cama e me olhou séria.
- Vai acontecer alguma coisa?
Minha voz ficou presa na garganta. Com muita dificuldade consegui falar:
- Não. Não vai...
- Mas você não disse que era errado deixar vivo quem tinha que morrer? Que isso poderia ser pior?
- Eu não quero perder você.
Ela murmurou baixinho que me amava muito também, mas as dores que sentia, faziam com que ela fosse mais racional que eu. Sabia que não deveria manter vivo quem devia morrer. Poderia causar muito mais sofrimento. Mesmo que fosse repentina, injusta, um assassinato ou um suicídio, era a lógica humana, mas eu não conseguia...não podia ceifar a alma dela. Não queria ficar sozinha mais uma vez.
Ela fez um último esforço, levantou da cama e se aproximou de mim.
- Não toca em mim. Você sabe o que acontece se...
- Eu te amo.
A boca dela se encontrou com a minha e surgiu um beijo, longo, gostoso, apaixonado. Eu a envolvi nos meus braços enquanto a beijava e senti sua alma ir embora. Depois, coloquei seu corpo na cama. Uma enfermeira avisou aos outros o que aconteceu. Levaram o corpo, fiquei sozinha no quarto por muito tempo. Olhei pela janela e estupidamente pensei que seria muito bom me jogar de lá, no décimo quinto andar.

Uma estranha conversa

Gosto desse lugar, um deserto imenso no meio do mundo. É completamente vazio e sem vida. Muito raramente passa por aqui uma ou outra caravana. Assim, não fico observando a vida, que um dia vou destruir. É morto, solitário. Como um espelho da minha alma.
Venho aqui quando algo muito estranho ou mais difícil que o normal acontece. Dessa vez foi a conversa que tive com um velho senhor que teve a alma ceifada há pouco tempo.
Ele era legal. Percebeu imediatamente quando entrei na velha cabana em que mora, em um lugar tão distante do mundo quanto esse em que estou agora. Me cumprimentou tranquilo e até perguntou se não queria me sentar:
- Meu cansaço não é físico.
- Acho que compreendo. Deve ser difícil ser você.
Não é qualquer um que pode me ver, principalmente quando não desejo, mas ele tinha algo especial.
- Então, além de me ver, sabe quem sou eu?
- Claro, eu a conheço. Infelizmente, te conheço mais do que desejava. Eu vi quando sua foice arrancou as almas de meus pais, depois da minha esposa e ainda da minha filha.
- ...
Fiquei angustiada, com um nó na garganta. Ele abriu um sorriso consolador e quebrou o silêncio que estabeleci.
- Isso foi há muito tempo. Ainda dói, é verdade, mas hoje finalmente chegou a minha vez, não é?
- É.
- Sabe se vou encontrá-los de novo?
- Não sei, mas espero que sim.
- Acho que só tem um jeito de saber...
- Eu invejo a sorte de vocês. Sempre tem uma esperança, mesmo que ela seja tão mórbida.
- Gostaria realmente de te dar algumas respostas, mas sou só um velho de noventa anos de idade prestes a morrer.
Dessa vez foi ele quem ficou um pouco angustiado. Acho que ele se sentiu impotente, por isso me esforcei e sorri. Não queria que aquele homem tão bom morresse sem um pouco de alegria.
- Eu tenho a eternidade pela frente. Vou descobrir um jeito de ser feliz.
Ele se aproximou de mim e, como se eu fosse uma neta dele, afagou meus cabelos com ternura. O contato foi rápido, mas intenso. Senti sua alma se soltando do corpo. Eu mesma o enterrei.
Será que o que disse a ele é uma verdade? Já vivi uma espécie de eternidade e momentos como esse são extremamente raros. Bem, de qualquer forma vou ter que encarar o futuro, de um jeito ou de outro.

Definitivamente, eu queria morrer

É aquele ali. O garotinho descuidado que acaba de se livrar da incômoda e protetora mão de sua mãe. Todo sorridente e despreocupado, ele corre atrás de alguma coisa estúpida e acaba no meio de uma avenida movimentada. Toco no ombro dele e nesse momento um ônibus não consegue parar a tempo...
A mãe do garoto solta apenas um grito desesperada e cai no chão desmaiada. Queria tocar nela também, pra que ela não acorde e descubra que aquilo não foi um terrível pesadelo. Mas, ainda não chegou a hora dela.
Essa é sempre a pior parte. Não é tão triste ver alguém morrendo, mas acompanhar a dor dos vivos é simplesmente horrível. Por isso, chamo a mim mesma de mensageira da amargura e da solidão. Sem nenhum prazer, sou a Morte!
Hoje, quero contar uma novidade para vocês. A Morte também tem coração. Ela odeia o próprio trabalho. Não sou insensível ao desespero de uma mãe ou fico contente por separar um casal de apaixonados. Mas o que eu posso fazer, merda?
Vocês são milhões de vezes mais afortunados que eu. Mesmo que sofram com uma separação, sempre podem contar com a minha visita um dia. Eu sou eterna, vivi e viverei para sempre. Vou carregar por toda a eternidade o sofrimento que causei. Definitivamente, eu queria morrer!

MORTE - por Gustavo Samuel

Sim, essa é outra história com personagens solitários, melancólicos, cheia de mortes e lágrimas. Não poderia ser diferente, afinal de contas, eu sou a principal personagem dessas seqüências de palavras que não deveriam ser ditas. Ah, sim! Permitam que eu me apresente. Sou a Morte.
Inflexível, implacável, fria. Sinto muito em destruir seus conceitos pré-concebidos, mas não sou assim. Bem que gostaria de ser assim, pelo menos não me sentiria tão triste, atormentada pelo meu inevitável destino melancólico.
Desgraçadamente, tenho coração, que se parte toda a vez que uma mãe tem que chorar no túmulo de seu filho ou quando um homem urra de dor quando não sente mais a respiração da esposa.
Desgraçadamente, tenho coração. Um coração rebelde, que se lança sempre ao impossível. Quer se apaixonar, o tolo. Bate mais forte quando encontra alguém especial, mas o amor não é feito para a Morte.
Ninguém pode escapar de mim. O mais leve toque já é suficiente para fazer cumprir o destino. Consequentemente, nunca terei o prazer de tocar no rosto de uma mulher ou mordiscar seus seios. Quando me deixo levar pelo desejo, por uma esperança idiota de que dessa vez algo diferente irá acontecer, uma jovem na flor da idade ou um rapaz cheio de vida deixa de existir nas minhas mãos.
Talvez seja uma praga ou uma retribuição pelo serviço que nunca escolhi. Talvez as palavras daquela senhora, que soluçava desesperadamente ao lado da companheira em uma cama de hospital, mudaram meu passado e futuro:
- Maldita. Levaste para sempre a única razão para meu viver. Separaste duas almas gêmeas e ainda ris tranquilamente. Maldita, maldita, maldita. Mas acredites, um dia terás que me levar também, pois esta é a ordem natural das coisas e não podes mudá-la. Ainda que demore muitos anos, serei feliz ao lado de minha amada nos doces Campos Elíseos no reino de Hades. Tu, no entanto, és desgraçada. Viverás para sempre, sozinha e amaldiçoada.
Viverei para sempre, sozinha e amaldiçoada. Sozinha, para sempre e amaldiçoada. Amaldiçoada, para sempre sozinha. Algumas pessoas sorriem quando me veem e suspiram aliviadas. Eu nunca terei nem mesmo esse consolo. Viverei sozinha, para sempre amaldiçoada.

Apresentação

Senhoras e senhores, eu vos apresento a Morte. A mulher que todos vão conhecer um dia. Pelo menos uma vez por semana, espero publicar um conto sobre a Senhora Inevitável. Tudo surgiu com o conto que apresento no post seguinte. É uma experiência, que espero ser agradável a muitos. Alguma sugestão, crítica, xingamento ou elogio, por favor enviem para gustavosamueldasilva@hotmail.com.